AS POSSÍVEIS (IN)CONSTITUCIONALIDADES DO RDD
Vamos imaginar um caso hipotético no qual um sujeito, brasileiro ou estrangeiro, foi condenado a cumprir 15 anos de pena privativa de liberdade, a qual é subdividida em reclusão, detenção e prisão simples, tendo em vista que o dito agente assassinara sua companheira de forma bastante cruel, enquadrando-se no tipo legal constante do artigo 121, §2°, III, do CP, necessitando ser apenado com pena privativa de liberdade por meio de reclusão, sendo, portanto, encaminhado diretamente ao regime fechado.
Ressalte-se que, após ser preso, o agente criminoso não apresentou um bom comportamento, visto ter incorrido em diversas condutas violentas que geraram conflitos dentro do presídio, contribuindo para a fuga de outros detentos da penitenciária, além de ter estimulado seus companheiros de celas a fugirem a todo custo. A partir desse enredo, percebe-se que o detento comprometeu a segurança do presídio, uma vez que materializou condutas de alto perigo, colocou todos os presidiários em risco e descumpriu as normas e regras jurídicas presentes no Código Penal e também na nossa Constituição Federal de 1988.
Além do mais, o agente, em razão da sua reincidência no cometimento de ações violentas, comportando-se desrespeitosamente e portando-se indisciplinadamente perante o sistema presidiário, já que se envolvera também em rixas, praticara desacatos e instigara fugas do presídio, foi submetido ao Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Nesse contexto, é necessário observar a legitimidade do RDD, com base nos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, a fim de saber se houve lesões a estes princípios, os quais são de suma importância para a aplicação do RDD em consonância com o ordenamento jurídico.
O Regime Disciplinar Diferenciado, como se sabe, é uma espécie de sanção disciplinar presente no art. 53, V, da LEP, sendo preciso para a sua incidência a prática de fato previsto como crime doloso, nos termos do artigo 52 da LEP. Em relação a este artigo, vislumbra-se como alteração legislativa promovida pelo pacote anticrime (Lei n°13.964/2019) a inclusão dos vocábulos "nacional ou estrangeiro” no caput do texto original. Entretanto, a alteração revela-se como infrutífera, com baixa eficácia, na medida em que o agente que cumpre pena no Brasil, quer seja nacional ou mesmo estrangeiro, deverá seguir as regras e princípios determinados no ordenamento jurídico nacional. Vale ressaltar, inclusive, que antes do advento do pacote anticrime, o RDD tinha duração máxima de 360 dias, sendo permitida a repetição da sanção por nova falta grave da mesma espécie até o limite de um 1/6 da pena aplicada. Atualmente, porém, a Lei de Execução Penal, alterada pela Lei n°13.964/2019 do pacote anticrime, estabelece o prazo de até 2 anos para a duração máxima do RDD, sem prejuízo da repetição da sanção por nova falta grave da mesma espécie, segundo o artigo 52, I, da LEP, o que explicita que a reforma legislativa promovida pelo pacote anticrime recrudesceu ainda mais o instituto do RDD, o qual passou a ser ainda mais rigoroso com os presidiários.
No que concerne ao sistema carcerário brasileiro, visualiza-se um ambiente falido, inóspito, deteriorado e completamente ausente de instrumentos que assegurem o resguardo dos direitos humanos dos "invisíveis" e "excluídos" da sociedade, tendo em vista a existência de múltiplas pesquisas e dados que demonstram que o sistema penitenciário não possui a capacidade de ressocializar os presos, sendo evidente a percepção de que as condições dos presídios são desumanas, precárias e as superlotações aumentam as rebeliões dos detentos, as quais retroalimentam os conflitos sociais. Por outro lado, há doutrinadores que defendem a tese segundo a qual o RDD está em conformidade com os princípios da isonomia e da dignidade humana, a exemplo de Guilherme Nucci o qual sustenta:
"Não se combate o crime organizado, dentro ou fora dos presídios, com o mesmo tratamento destinado ao delinquente comum. (...) Por isso, o regime disciplinar diferenciado tornou-se um mal necessário, mas está longe de representar uma pena cruel. Severa, sim; desumana, não. Aliás, proclamara inconstitucionalidade desse regime, mas fechando os olhos aos imundos cárceres aos quais estão lançados muitos presos no Brasil é, com a devida vênia, uma imensa contradição". "Ademais, não há direito absoluto, como vimos defendendo em todos os nossos estudos, razão pela qual a harmonia entre direitos e garantias é fundamental. Se o preso deveria estar inserido em um regime fechado ajustado à lei – e não o possui no plano real -, a sociedade também tem direito à segurança pública. Por isso, o RDD tornou-se uma alternativa viável para conter o avanço da criminalidade incontrolada, constituindo meio adequado para o momento vivido pela sociedade brasileira". (NUCCI, Guilherme de Souza, 2010. Apud Sobreira, 2012, p.20).
É tangível que o Regime Disciplinar Diferenciado é extremamente severo para os padrões de um Estado Democrático de Direito, porquanto a implantação desse regime viola a integridade física e moral dos detentos, além de uma série de direitos dos mesmos, a saber : o artigo 1º, III da CRFB/88 (a dignidade da pessoa humana); o artigo 4°, II da CRFB/88 (a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais); o artigo 5° da CRFB/88, incisos III (ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante), X (são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação); o XLIX (é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral).
Com base na filosofia kantiana, concebe-se que o ser humano é um fim em si mesmo e não um meio para um fim, devendo orientar-se pelo imperativo categórico (algo é bom em si mesmo independente dos resultados que venham a produzir). Logo, há quem defenda que o Regime Disciplinar Diferenciado é inconstitucional, pois contraria os princípios constitucionais da isonomia, dignidade humana e legalidade, bem como os direitos dos presos que são seres humanos, fins em si mesmos, razão pela qual o instituto legal do RDD acarretaria muito mais o aumento da violência e da insegurança do que propriamente a sua redução e controle. Acerca dessas considerações, Maria Thereza Rocha de Assis Moura leciona:
"O castigo físico imposto ao condenado submetido ao regime disciplinar diferenciado viola a dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, inscrito no art. 1º, inciso III, da vigente Constituição da República. Mas não para por aí a inconstitucionalidade. A Lei Maior assegura, como um dos princípios de suas relações internacionais, a prevalência dos direitos humanos (art. 4º), estando disposto no art. 5.2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em vigor no Brasil (...). O mesmo direito está assegurado no art. 5º, III, da Constituição da República, que também garante, dentre o rol de direitos e garantias fundamentais, o respeito à integridade física e moral dos presos (art. 5º, XLIX). O regime disciplinar diferenciado representa sobrepena cruel e degradante, que avilta o ser humano e fere a sua dignidade, infligindo-lhe castigo físico e moral, na medida em que impõe ao preso isolamento celular absoluto de vinte e duas horas diárias durante um ano, prorrogável até 1/6 da pena". (MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis, 2007. Apud Sobreira, 2012, p.16-17).